domingo, 17 de fevereiro de 2008

Dor


"Uma dor sem tamanho

Você lembra o que passou pela sua cabeça quando começou a ser molestada? Na primeira vez que aconteceu, eu não tinha a menor noção de sexualidade. Muitas coisas passaram pela minha cabeça. Será que isso é normal? Será que ele tem o direito de fazer isso? Eu só sabia que era uma coisa que doía, me machucava e não me fazia bem. Eu estava sozinha com ele na piscina. Foi um susto. E doía.

O que ele falava?Ele me mandava ficar calada e às vezes me mandava rir. Pedia para eu guardar segredo. Eu dizia: "Pelo amor de Deus, pára".
Você já tinha começado a desenvolver corpo de adulta?Só menstruei com quase 16 anos. Eu era uma criança, com corpo de criança.

Você achava que ele fazia o mesmo com outras meninas?Não. O relacionamento que a gente tinha era muito próximo. Não conseguia imaginá-lo fazendo isso com outra criança.
Você sabia que ele estava fazendo uma coisa errada?Não sabia se era certo ou errado. Comecei a querer distância quando aconteceu um episódio na casa dele. Foi o pior de todos, prefiro não entrar em detalhes. Ali eu me acabei de chorar e falei: "Me leve para casa agora".
Na casa dele?Foi quando as coisas realmente aconteceram, entendeu? Depois do treino, ele estava me levando para casa e parou antes na casa dele. A mulher estava trabalhando e as crianças estavam na escola.

A sua família e a dele eram amigas?Sim. Éramos muito amigos. Ele, a mulher e os filhos ficavam sempre com a gente nos fins de semana. Eu ia muito à casa deles. Uma noite, eu estava dormindo com a filha dele, uns três anos mais nova, e vi que ele se aproximava. A imagem que me vem é a da sombra dele parado, me olhando. Nessa noite, eu comecei a chorar, chamei a mulher dele e disse: "Quero ir para casa". E foi a última vez que fui à casa dele.

Por quanto tempo você foi molestada?Uns dois meses. Eu treinava de manhã e estudava à tarde. A equipe era pequena, por isso ele tinha mais oportunidade. Mudei para a tarde, mesmo perdendo aulas. Como havia mais gente, ele parou. No fim do ano, falei para a minha mãe que não estava nadando bem e queria sair. Para ele, nem falei nada. Depois das férias, troquei de colégio e de clube. Foi uma tentativa de mudar tudo e começar do zero.

Quando você disse para sua mãe que queria mudar, tentou explicar o motivo?Foi a única vez que tentei tocar no assunto. Disse algo assim: "Acho que ele fez alguma coisa, mas não tenho certeza". Esperava que ela entendesse, mas ela falou: "Não, minha filha, você interpretou errado, é coisa da sua cabeça. Nunca mais pense nisso e vamos tocar a vida para a frente".

Em 2005, seu rendimento na piscina baixou. Você diz que nesse mesmo ano o abuso que tinha sofrido voltou à lembrança. As duas coisas estão relacionadas?Mais ou menos. As lembranças não voltaram da noite para o dia. Eu sempre soube o que tinha acontecido comigo, mas não recordava todos os fatos nem a gravidade deles. Quando lembrava, pensava em outra coisa. Aí decidi fazer terapia, por vários motivos, mas principalmente porque não estava conseguindo retomar minha vida. Comecei a reviver tudo. Aos 9 anos, quando já tinha mudado de clube, tive pânico de dormir sozinha e passei três anos me tratando com uma psicóloga, mas nunca falei sobre os abusos. Quando ela me perguntava por que só queria dormir com meus pais, eu falava que era medo de filme e de escuro.

O que a levou a revelar tudo para sua mãe em 2006?Eu estava muito debilitada, com depressão, dormia mais de catorze horas por dia. Como me senti melhor depois de falar com meu terapeuta, resolvi contar para minha mãe e para o meu namorado, com quem estou há três anos. Parece que eu vomitei tudo e me senti 300 quilos mais leve. Você não tem noção da felicidade que sinto sabendo que minha família e meus amigos compreendem o que aconteceu.

Sua mãe deve se arrepender muito de não ter tentado entendê-la desde o começo. É verdade. Mas ela não tem culpa de nada. Quando eu finalmente contei tudo, ela me pediu desculpas, como faz até hoje, e chorou muito. Era como se quisesse me colocar no colo. Meu pai sabe por alto. Quando falei com minha mãe, ela e meu pai já estavam separados. Ele deve estar sofrendo calado.

Fazendo terapia e tendo revelado seu drama, você acha que superou o trauma ou só aprendeu a conviver com ele?Aprendi a conviver, e essa foi minha maior vitória até agora. É o tipo de coisa que ninguém supera. Até hoje, não consigo falar tudo. Sinto alguma coisa muito ruim quando começo a verbalizar. Não sei nem se é dor. É um aperto que dá."




Essa entrevista é da repórter Sílvio Rogar, da edição de Veja dessa semana. Não gostei muito da forma como a entrevista foi conduzida (ao menos não da forma como foi publicada), achei meio mecânica para uma "pauta" tão densa. Mas acredito que as palavras da Joana Maranhão (cujo trabalho acompanho desde os tempos em que eu disputava a Brasil Norte e uma menina que estudava no Marista de Recife me falou sobre a então "promessa da natação pernambucana") são tão sinceras que merecem ser compartilhadas.

Bjo!

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